Wednesday, June 17, 2015




20.01.20&¶


É muito importante respeitar os prazos de validade. Tem gente que insiste em consumir o produto até o cheiro e o gosto mudarem por completo para algo detestável. E digo por completo, porque ainda tem gente que insiste em retirar apenas a parte que visivelmente se transformou em bolor e consumir o resto.
Estamos juntos há 9 anos, sendo 1 como namorados, 4 como casados e mais 4 como pais de Isabela. Toda semana nos unimos na tarefa de jogar fora os produtos vencidos da geladeira. Ela é como eu: respeita os prazos de validade. E é ansiosa como eu: verifica dia sim dia não como estão os prazos, para saber em quanto tempo teremos que consumir o que ainda não venceu.
Consigo disfarçar bem a suave angústia que sinto sempre que olho para a data impressa nos produtos. Algumas estão bem visíveis, outras vêm em letras quase indecifráveis, mal impressas ou distorcidas por algum amassadinho da embalagem. As datas que encontro com mais facilidade são as que me deixam pior. O tempo que passaria distraído realizando a minuciosa tarefa de achá-las ou decifrá-las, passo contemplando aquela grandiosa, legível e arrogante data, parada diante de mim. Parada e em movimento, porque cada segundo que nos encaramos é roubado dela por mim e de mim por ela. O ligeiro pavor que sinto nesse momento vem da lembrança de que também eu tenho um prazo de validade. Mas só conseguirei descobrir qual é a data bem no dia que ela chegar. Isso me angustia de verdade, mas só um pouco.
Quando será que ela vai me jogar fora? É a primeira coisa que penso. Será que o patê vai durar mais do que a minha vida? É a segunda coisa que penso. Como será que a minha vida vai estar quando esse leite, com prazo de validade de quatro meses – se mantido fechado e armazenado em local seco e arejado – ficar velho? Será que até lá eu terei desenvolvido intolerância a lactose?
Nosso relacionamento muda de sabor como uma fruta que amadurece bem devagar. Posso não saber a data exata da validade da nossa relação, mas, como nos amassadinhos da embalagem, consigo ver um ou outro número, talvez o ano, mas não tenho certeza. O número, no caso, é um símbolo para uma vaga percepção de que talvez, só talvez mesmo, não tenho certeza, ela esteja experimentando um produto novo no mercado. Esse produto pode ser o novo amigo do novo curso que depois sempre sai para tomar um café com ela e às vezes até sorvete para discutir algum assunto que não ficou tão claro na aula.
Jotapê é o nome dele. Não sou um cara ciumento, mas sou medroso. De tanto contemplar prazos de validade, tenho a plena consciência – talvez não tão plena, senão ficaria um pouco desesperado – de que tudo na vida acaba. Penso que 9 ou 10 anos é um excelente prazo para uma relação, eu já deveria estar satisfeito com isso e não deveria me comportar como aqueles que não respeitam prazos. Insistir em consumir algo que já não lhe faz bem é, também no caso dos alimentos emocionais, pedir para ter asco ou muitos problemas de saúde. Será que para ela eu já apresento algum bolor?
Essa marca de café me lembra dos nossos 20 anos de casados. Essa massa fresca de validade curtíssima me lembra das nossas curtíssimas brigas nesses 30 anos de casados. Esse ketchup já no fim me lembra que os netos vêm no fim de semana e que precisamos comprar mais ketchup.  Dividimos o último iogurte da bandeja, que venceria amanhã. Todos os Jotapês tinham um prazo mais curto que o meu. É muito importante respeitar os prazos de validade, também no que se refere a saber esperar – e aproveitar – até que ele realmente chegue.


Conto publicado na revista Vacatussa, inspirado na ilustração de Derlon Almeida.


Wednesday, July 6, 2011

De 6 meses pra cá

Mais um punhado de minhas resenhas informais. Essas são dos livros que li nos últimos 6 meses.




A roda da vida - Padma Samten


Poderia chamá-lo de "meu primeiro livro budista", uma boa introdução para quem tem interesse na temática. Escrito por um físico que se tornou lama, o livro, em um formato enciclopédico, aborda de um ponto de vista quase científico a criação, passo a passo, de nossa ignorância. Digo "quase" científico porque, apesar de mostrar a evolução de nossa visão dualista ilusória em um conteúdo lógico que lembra física óptica, o que conduz no livro essa evolução é a chamada roda da vida, com termos como dukkha, avydia e outras palavras do dicionário budista que podem deixar os menos iniciados como eu um pouco intrigados. Mas meu conselho é deixar de preconceito - típico da ignorância - e seguir em frente.






Além do materialismo espiritual - Chögyam Trungpa

Ao contrário do livro de Padma Samten, esse aqui você lê sem nem se lembrar de que estamos falando de budismo. É um livro precisamente descritivo, de filosofia e espiritualidade, que resumidamente espanca o seu ego - fonte de boa parte das besteiras que fazemos na vida. E o materialismo espiritual está justamente na busca pelo lado espiritual que só alimenta o ego, em vez de nos conduzir ao confronto - ou melhor, ao reconhecimento - de nossos medos, falhas, preconceitos. Nossa cabecinha é um grande criador de mundos confortáveis ou infernais para nós, cabe a nosso trabalho mental-braçal tentar controlar o motor gerador de infelicidade do ego.





Eletroencefalodrama - Joca Reiners Terron

Um dos melhores livros de poemas que já li. Comprei essa relíquia de 1998 em uma queima de estoque da extinta editora Ciência do Acidente, no ano passado. O livro impressiona pela quantidade de poemas simplesmente maravilhosos - eu poderia dizer que 100% deles, sem estar exagerando. Foi o primeiro livro de Joca Reiners Terron, o que me deixou ainda mais impressionada com a qualidade muito acima da média de um livro de estréia.





Todos os belos cavalos - Cormac McCarthy

Ouvi um amigo comentar que a literatura de McCarthy era para homens. Isso me estimulou ainda mais a conhecer a tal literatura para machos. Meu amigo, de certa forma, tinha razão. Mas justamente por ser livro de temática e formato essencialmente masculinos, eu recomendaria ainda mais às mulheres. O meu primeiro McCarthy conta a história de John Grady, um garoto americano que foge de casa com o seu cavalo para lidar precocemente com o mundo adulto e nada fácil no México. A economia de palavras e aparentemente de sentimentos no texto de McCarthy consegue ser mais sensível e precisa do que muitas tagarelices sentimentais. Isso foi o que mais me tocou no livro, seu formato seco, direto e de uma beleza que parece um diamante escondido em uma parede de rocha. Um texto fiel ao jeito de se comunicar masculino, que é tão cheio de sutilezas em seu aparente vazio bruto. Fiquei com a sensação de que homens às vezes são melhor compreendidos por cavalos do que por mulheres.




Portões da prática budista - Chagdud Tulku Rinpoche

Lindo livro, extremamente didático, indicado para quem não desistiu da temática depois de ler os dois primeiros dessa lista. Esse já se trata de budismo clássico, com introduções aos assuntos básicos do dia-a-dia de quem quer rezar e meditar para minimizar os seus problemas e os dos outros – quiçá pular fora dessa vida inventada.

Tuesday, August 31, 2010

Café com leite

Sempre que vou à copa aqui no trabalho e sinto o cheiro de café com leite em copo descartável, lembro que envelheci. Isso acontece uma ou duas vezes na semana, já que o pessoal só toma expresso puro, dificilmente adicionam leite. Quando alguém faz isso e por coincidência estou passando, abre-se um portal diante do meu nariz e me teletransporto para os meus 9 anos.


Café com leite em copo descartável é o cheiro da firma que a minha mãe trabalhava quando eu era pequena. Não consigo evitar esse flashback instantâneo. Volto para a minha mesa e percebo que agora eu consigo encostar os pés no chão quando estou sentada. Percebo que não gasto mais boa parte do tempo desentortando clips para construir estilingues, que posso mexer no telefone sem ninguém brigar comigo e que não fico mais girando a cadeira até ficar tonta.


É muito estranho ver que agora sou eu quem trabalha em um escritório. Os pensamentos de criança voltam com tudo e lembro claramente de olhar para cima e prestar atenção nas conversas dos adultos. O chefe da minha mãe me elogiando por tirar boas notas e o gostinho maravilhoso do café com leite, tirado cuidadosamente por mim daquela garrafa térmica. Aquele cafezinho era o meu momento de ser adulto.


E agora eu sou um deles. Agora, aperto as teclas do meu computador, bem mais moderno que a máquina de escrever da minha mãe, só não é mais divertido como naqueles tempos. Isso é assustador. Já tenho 31 anos. Quando os filhos dos meus colegas de trabalho visitam a firma, olho para eles e me vejo. Eu sou eles, já não sou eu. Sou a criança fuçando a gaveta da minha mãe atrás de bolachas.


Fico tentando descobrir quando se deu essa mudança para a vida adulta. Há pouco tempo, eu era uma estagiária assustada de aparelhos nos dentes. Dia desses, estava ainda indecisa sobre o que fazer no vestibular. Ontem mesmo, eu dormi empacotada numa caverna de edredons muito parecida com a dos acampamentos de infância do quarto dos Bultrins, em Olinda. Mais uma vez, dormi pequena e acordei grande.


E foi assim, de ontem para hoje, que tudo aconteceu e construí minha vida adulta. Tenho uma rotina de trabalho, namorado, compromissos sociais, contas para pagar, quero comprar um apartamento, leio livros interessantes. O último deles, “Homem Comum” de Philip Roth, por coincidência, tem como tema a velhice e a percepção, de certa forma brusca, da nossa falência física; de que, de uma hora para a outra, acabamos.


Mas, diferentemente do livro, a minha surpresa com meu café com leite em copo descartável não é perceber que acabamos: é constatar que começamos. Tão impactante quanto ter noção de que estamos envelhecendo é se dar conta de que estamos vivendo. A soma de todos esses dias vividos deu nisso que eu sou. Na infância, eu era apenas uma ideia do fazer. Agora, sou o fazer. E esse é o momento mais difícil de ser capturado e valorizado. Esse, só um café com leite para me fazer parar, notar e até apreciar. O tempo passou e eu fui junto, ainda bem. Na velhice, a percepção vai ser outra: vou ser o já feito (e Deus queira, muito benfeito). E vou ter outro cheiro de outra coisa para me fazer perceber, de repente, que estou de novo no lugar da minha mãe, aposentada, bordando toalhinhas e torcendo por uma ligação da filha. Mas isso ainda está bem longe de acontecer. Ainda vai demorar. Vai ser só amanhã.




*

Texto publicado no livro "Coletânea Antônio Maria de Crônicas", lançado no Recife. 

O vazio que preenche



Diante dessa bolañomania, decidi degustar o meu primeiro Bolaño, optando por um petisco de menos de 200 páginas. Tava achando o livro chato até mais ou menos a página 40, quando tudo começou a se justificar e aquela mágica que faz o coração ficar dormente começou a agir aos pouquinhos, a conta-gotas, me deixando cada vez mais encantada com a história. O personagem principal é um padre apaixonado pela literatura chilena, que também é escritor e crítico literário e passa todo o livro confrontando sua vida através do tal “jovem envelhecido”, de quem parece ter raiva e às vezes medo. De uma delicadeza impressionante, com sutilezas de suspirar, a história dá um certo barato melancólico no final e tem a melhor frase de encerramento de livro que já li. Aí é que se mostra um escritor genial: o cara que calcula o efeito do todo do livro (será que calcula?) e surpreende você com a simplicidade e a humildade de uma narrativa sem pretensões maiores do que a de mostrar que tudo é tão vazio. E que nem a literatura salva.

Wednesday, August 25, 2010

Dudismo



Mais um para a minha sequência deliciosa de livros de autossabotagem. Leitura obrigatória para toda a humanidade, é assim que eu resumiria esse livro, que tenho há mais de 5 anos na estante mas que só agora tirei para ler. Basicamente, informa ao cidadão que ele não é nada disso do que ele pensa que é. Expõe de forma didática as armadilhas do auto-engano, ao mesmo tempo demonstrando a importância dessa nossa habilidade: sem ela, não teríamos nenhuma motivação para viver. Ou seja, que bom que somos todos auto-enganados, que inventamos nossas próprias razões e justificativas para os erros, que acreditamos que podemos ser algo maior do que somos (e por causa disso alguns de nós acabam se tornando maiores mesmo). Ter consciência de que mentimos falando a verdade pelo menos ajuda a ter mais humildade nas atitudes e a compreender melhor o que você classificaria como idiotice nos outros. Grande livro do economista Eduardo Giannetti, fundador da filosofia do “Dudismo”, da qual sou seguidora. Grande livro, mas posso estar enganada.

Monday, July 12, 2010

Mundo interior

Texto publicado na revista Noize (julho/2010).



Enquanto escrevo, milhões de partículas de matéria escura do universo perfuram o meu cérebro sem eu nem sentir. Aprendi isso assistindo a mais um capítulo do meu programa de TV preferido, “O universo”, todas as quartas à noite no History Channel.

Essa tal matéria escura ocupa mais de 90% do universo, é invisível e não interage com a matéria comum. Ou seja, para ela, é como se não existíssemos. Passa por nós como um fantasma passaria por uma porta. Até suspeito de que seja feita das mesmas partículas que as almas – se você visse os cientistas tentando provar sua existência, se lembraria na hora dos caça-fantasmas.

Tão bom quanto programas que lembram o quanto você é insignificante são os que mostram o quanto você é moralmente primitivo. É também na quarta que frequento, de vez em quando, um templo budista e, às vezes, até palestra em centro espírita.

Nada de ir pedir a Deus ou a Buda isso ou aquilo. Conforto é uma coisa que você definitivamente não encontra nesses tipos de abordagens religiosas. O ensinamento aqui é quase o mesmo da matéria escura, só que o que se mostra insignificante não é a matéria, mas sim os valores relacionados a ela.

Ciência ou religião, dá no mesmo: o importante é ter algo para tirar você da bolha da rotina, que, se não tomarmos cuidado, torna-se nosso único mundo possível. De repente, nossa história se resume a ir ao trabalho, ter preocupações, colecionar reclamações e entrar na corrente de ambição da idéia de vida perfeita que nos é vendida, nos transformando em um buraco negro ambulante.

Abro os olhos, é segunda-feira. Pisco, é sexta. Onde foi parar a minha semana?
O que aconteceu comigo enquanto isso?

Perigo é se acostumar à realidade que construímos, onde não sentimos nada além do que é requisitado pelos fantasmas da sociedade. Conhecer é se machucar, é quebrar as pernas das nossas crenças e perceber o tempo todo o quanto somos previsíveis. Que sentimos raiva, inveja, que traímos e passamos por cima dos outros quando as coisas não acontecem do nosso jeito, aceitando esse padrão de comportamento humano.

Mas todo dia é uma chance de reconstruir o nosso mundo interior. Uma batalha que poucos travam, pois o prêmio é tal como a matéria escura: invisível, não interage com nossas mãos e até agora ninguém conseguiu provar que existe.

Wednesday, June 2, 2010

Lá vem o bolo alimentar.
O estômago comenta:“Ah, caviar”.
O fígado comenta: “Ah, champagne”.
O intestino comenta: “Ah, vão à merda".